A questão da escassez de água é um dos temas ambientais globais do século XXI. Assim como acontece com a população, os recursos hídricos não estão distribuídos equitativamente pela superfície do planeta. Há regiões onde a água é naturalmente escassa, como as áreas áridas e semi-áridas, e mesmo em áreas onde o chamado “ouro azul” é abundante, o aumento do consumo, bem superior ao incremento demográfico, o mau uso e o desperdício já indicam futuros cenários de escassez.
O Índice de Dependência de Água (IDA) permite análises geográficas e geopolíticas interessantes. O IDA mensura a proporção de água renovável, fundamentalmente de origem fluvial, oriunda de fora do território de determinado país. No fundo, oferece um número para a dependência de recursos hídricos controlados por países vizinhos.
Logo de início, obviamente, o índice revela que os países insulares – como Japão, Filipinas, Sri Lanka, Madagascar ou Cuba – exibem dependência zero, pois seus cursos fluviais nascem, fluem e deságuam dentro dos próprios territórios nacionais. Mas tais países são exceções. Na imensa maioria dos casos, a dependência de água oscila em função da combinação de variáveis como o contorno de fronteiras do país, a disposição das unidades do relevo e o desenho das redes hidrográficas. Os casos mais interessantes são os de países de grande extensão territorial ou de países drenados por rios cujas bacias abrangem vários espaços nacionais [veja o Mapa 1].
Na bacia Platina, as coisas se invertem. Como as nascentes e parte considerável do curso dos principais rios formadores da bacia estão em território brasileiro, a dependência hidrográfica de nossos vizinhos platinos é superior ao do Brasil: Argentina (66%), Paraguai (72%), Uruguai (58%) e Bolívia (51%).
De modo geral, os países de grande extensão territorial apresentam dependência hidrográfica inferior à brasileira. A Rússia possui IDA de apenas 4%, já que a maioria de seus grandes cursos fluviais, como o Obi, o Lena, o Ienissei e o Volga têm suas bacias hidrográficas quase totalmente inscritas no espaço nacional russo. A mesma explicação vale para o Canadá, com IDA de 2%, um reflexo da circunstância de que seus grandes rios – como o Mackenzie, o Iukon e o São Lourenço, drenam fundamentalmente o próprio território canadense. O IDA de 8% dos Estados Unidos explica-se, em grande parte, pelos fatos de que de seus maiores rios, o Colúmbia, tem nascentes no Canadá e porque o país compartilha com o México a bacia do Rio Grande, curso fluvial que serve parcialmente como fronteira entre os dois países.
A China é um caso emblemático. Seu IDA baixíssimo (1%) deriva da configuração territorial do país e da direção oeste-leste de seus principais rios: o Hoang Ho, o Yang Tse-kiang e o Sikiang são exclusivamente chineses. Ademais, no planalto do Tibete chinês estão as nascentes e os altos vales de rios transnacionais. O Bramaputra nasce na China mas atravessa a Índia e Bangladesh. O Irriwady, o Saluem e o Mekong fluem para países do Sudeste Asiático. As montanhas e altos planaltos do Tibete chinês funcionam como uma espécie de “caixa d’água” da Ásia Oriental.
Alguns países apresentam índice de dependência hídrica muito elevado, o que tem relevantes consequências geopolíticas. Um exemplo notório é o Egito, com IDA de 97%. Heródoto estava coberto de razão quando disse que “o Egito é uma dádiva do Nilo”, referindo-se a um país cujo território estende-se totalmente por áreas desérticas. O Egito é o último dos países servido pelas águas do Nilo, cuja bacia hidrográfica se estende por cerca de uma dezena de espaços nacionais. No extremo oposto, a Etiópia, um dos “vizinhos hidrográficos” do Egito, exibe o surpreendente IDA de zero, igual ao de países insulares. A explicação: os altos planaltos etíopes são dispersores de águas. Neles, aliás, estão as nascentes do Nilo Azul e do Atbara, dois dos maiores afluentes do chamado Nilo Branco [veja o Mapa 2].
Na Europa centro-oriental, os índices de dependência variam bastante, mas chama a atenção o caso da Hungria, com IDA de 94%. O, cercado pelas cadeias montanhosas dos Alpes, dos Cárpatos, dos Alpes Dináricos e dos Bálcãs, está integralmente situado na planície Húngara e é drenado quase apenas pelo rio Danúbio. A bacia danubiana se espraia por territórios de uma dezena de países, muitos dos quais a montante da Hungria. A Alemanha, onde estão as nascentes do Danúbio, tem índice de 31%, basicamente porque também é drenada pelas águas do Reno, cujas nascentes estão na Suíça. Já a Holanda, situada no baixo vale do Reno, exibe IDA de 88%.
Há combinações altamente desfavoráveis. Países com IDA elevado, situados em regiões de escassez de água e cortados por rios que atravessam vários territórios nacionais são, como regra, sujeitos a tensões geopolíticas importantes. Dois exemplos clássicos são o Iraque (IDA de 53%) e a Síria (IDA de 80%). Ambos dependem dos rios Tigre e Eufrates, cujas nascentes estão na Turquia (IDA de 1%).
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