quinta-feira, 26 de março de 2015

Fim do Embargo: O mundo diz sim, os USA mais uma vez, diz não.

Na última terça-feira (28), a Assembleia Geral da ONU condenou de forma maciça – pela 23ª vez – as décadas de bloqueio econômico dos EUA contra Cuba. Na reunião dos 193 países, 188 deles votaram pela resolução chamada “Necessidade de terminar o embargo econômico, financeiro e comercial imposto pelos Estados Unidos da América contra Cuba”.

Como nas últimas vezes, os únicos países a votarem contra a resolução foram os EUA e apenas um aliado, Israel. As nações insulares de Palau, Ilhas Mashall e Micronésia, do Oceano Pacífico, se abstiveram – exatamente como no ano passado. Exceto que, dessa vez, diversos países exaltaram a ilha caribenha por sua pronta e eficiente resposta à epidemia de ebola que está devastando a África Ocidental.

Em discurso na Assembleia, o ministro das relações exteriores de Cuba, Bruno Rodriguez, apelou para que os EUA mudassem o curso de um embargo que já prejudicou muito o povo cubano, além de ter sido responsável por prejuízos econômicos que já passaram de 1 trilhão de dólares ao longo das cinco décadas de bloqueio: “Nós convidamos o governo dos EUA a estabelecer relações mutuamente respeitosas [...] Nós podemos conviver um com o outro de uma maneira civilizada, apesar de nossas diferenças”, disse Rodriguez, concluindo com a famosa estima cubana: “Cuba nunca abdicará de nossa soberania”. Washington cortou relações com Havana, impondo um embargo comercial à ilha caribenha há mais de meio século, ainda durante a Guerra Fria.

Para explicar o que significa a unânime desaprovação mundial do tratamento norte-americano a Cuba – contando com praticamente todos os seus aliados ocidentais e árabes – e como a dinâmica política interna dos EUA, assim como o lobby dos cubanos exilados no estado da Florida, ainda influencia Washington no trato com Havana, Fórum conversou com Luis Fernando Ayerbe, Coordenador do Instituto de Estudos Econômicos Internacionais da Unesp.

Revista Fórum: O que significa, em termos práticos, a Assembleia Geral ter sido praticamente unânime pelo fim do embargo a Cuba, e os EUA, junto de Israel, votarem contra?

Luis Fernando Ayerbe: Já ocorreram mais de 20 votações pedindo o fim do embargo desde a sua primeira vez e sempre perdeu.  Mas antes tinham mais abstenções e um pouco mais de votos contras e agora só tiveram dois contras: EUA e Israel, um isolamento total. Chega a ser, digamos, ridículo se não fosse trágico; porque não muda a realidade das relações dos EUA com Cuba, mas demonstra esse isolamento. Afinal, há um consenso geral que continuar com esse bloqueio é um absurdo.

Agora, tem um lado em que há pressões dentro dos EUA – tendo até mesmo [Barack] Obama dizendo que essa situação mudaria, pois temos uma nova geração com outra trajetória, que não acredita que continuar com o bloqueio seja bom para os EUA. Mas é difícil isso ser assumido, pois comprar essa briga é complicado. Há uma tendência dentro do governo dos EUA, assim como da opinião pública – ainda mais com o combate de Cuba ao ebola -, então há uma situação geral que pressiona os EUA, mas também há um lobby interno no país muito forte que impede a normalização das relações.

Então, não vai mudar tão proximamente, talvez se Obama for sucedido por Hillary Clinton, a tendência seja, em algum momento, resolver essa questão. Mas com a votação que teve ontem, não vai mudar nada.

Revista Fórum: O que ainda norteia essa política de manutenção do embargo?

Ayerbe: Tem duas leis que foram votadas com [Bill] Clinton: a Lei Torricelli e a Lei Helms-Burton, que endurecem o bloqueio a Cuba. Então, tirar o bloqueio não é decisão do presidente, ele tem de ter maioria no Congresso para elas deixarem de existir. Então, o presidente não pode tomar a decisão unilateral de acabar com o bloqueio, ele pode abrandar as medidas e etc. Isso é mais um problema de política interna, embora tenha mudado a correlação de força, pois a nova geração dos filhos dos cubanos exilados não é tão radical quanto a isso. Mas o grande problema nos EUA é o lobby interno, principalmente em Miami e no âmbito do partido republicano.

Existem também outros aspectos que estão pesando agora, que são de uma lógica de custo-benefício, sem entrar na questão da ideologia. É o caso das intervenções dos EUA no exterior, que estão trazendo efeitos colaterais que se voltam contra o país, como no caso do Iraque – com o surgimento do Estado Islâmico, ou na Líbia ou Síria. Você desestabiliza governos em nome da democracia, mas não consegue substituir por nada sustentável e isso gera situações de guerra civil, agora comuns na região.

No caso de Cuba, você pressionar um país, tentar asfixiá-lo por conta da escolha do regime político se torna, nesse momento, algo contraproducente, principalmente pela estabilidade na região. O Caribe é uma região importante para os EUA e Cuba tem um papel estabilizador de alguma forma. Mas a votação ajuda, pois só tem dois países contra. Isso é uma pressão permanente, mas ainda nada mudará.

Revista Fórum: É possível dizer que, por conta do colégio eleitoral da Flórida, onde o lobby de cubanos exilados é forte, seria um suicídio político para os congressistas não pressionarem tanto pela normalização das relações com Cuba? 

Ayerbe: O problema é o seguinte: o momento para melhorar radicalmente [as relações] seria no segundo mandato de Obama, pois ele não teria mais as urgências de reeleição, mas há toda uma pressão e críticas para com sua política externa, chamando-a de vacilante, que não tem estratégia, até questionando a aproximação com o Irã. Então, dar um passo nesse momento para normalizar as relações com Cuba, ocorrendo esse tipo de pressão, não seria politicamente interessante para Obama. Ele tem outras prioridades.

Assim sendo, a questão do lobby, hoje, não é tanto uma questão eleitoral, como foi na época de Clinton, onde o colégio eleitoral pesou em suas decisões. Isso é mais o contexto em que os EUA enfrentam problemas em outras regiões e a política externa de Obama quer marcar a posição de que tem uma estratégia, de que não é vacilante, que não se deixa levar pela Rússia ou pelo Irã. Acho que, em um próximo governo democrata, talvez Cuba se torne mais importante.

Revista Fórum: E em um republicano, não?

Ayerbe: Em um republicano teria que ver a tendência, em que contexto o presidente se elegeu, quais são as forças políticas dentro do partido. Digamos que, em um próximo governo democrata, que provavelmente seria Hillary Clinton, já existirá uma trajetória, onde já se sabe que internamente não haveria grandes questionamentos sobre a normalização das relações, mas com um partido republicano, haverá outra correlação de forças e me parece que esse não seria um tema imediato.

Obama defende fim dos Embargos a Cuba.

O presidente Barack Obama defendeu, nessa terça-feira (20) à noite, que o Congresso americano encerre o embargo econômico e financeiro a Cuba. O apelo ao Legislativo para decidir favoravelmente a Cuba foi feito durante o tradicional discurso do Estado da União, feito pelos presidentes norte-americanos desde 1790.

Além do fim do embargo, Obama pediu o fechamento da prisão americana em Guantánamo, território cubano, e denunciou o que chamou de ressurgimento do antissemitismo em relação aos mulçulmanos, em certos lugares do mundo.

“Nossa mudança na política em relação a Cuba tem potencial para acabar com um legado de desconfiança no hemisfério”, disse, referindo-se ao anúncio que fez em dezembro sobre a reaproximação com o país e o governo de Raúl Castro, após 50 anos de rompimento das relações diplomáticas.

No discurso proferido à Nação e ao Congresso por quase uma hora, Obama pediu que os congressistas votem o fim do embargo a Cuba. Ele disse ainda que não vai desistir de acabar com a prisão situada na base norte-americana de Guantánamo, em Cuba, conforme havia prometido no início do seu mandato. “É tempo de acabar o trabalho. Estou decidido e não vou desistir até encerramos a prisão”, disse. Ele observou que a prisão não “se justifica” e que não faz sentido mantê-la a um custo de US$ 3 mil por prisioneiro.

No cenário externo, Obama demostrou preocupação com o ressurgimento do antissemitismo em “certas partes do mundo” e condenou os “estereótipos” em relação aos muçulmanos. “Como americanos, respeitamos a dignidade humana. É por isso que continuamos a rejeitar estereótipos que insultem os muçulmanos, cuja grande maioria partilha o nosso compromisso com a paz ", defendeu, referindo-se às manifestações de repúdio ao jornal francês Charlie Hebdo, no começo deste mês, na França.

O discurso dessa terça-feira foi o primeiro proferido por Obama no Congresso norte-americano depois das eleições legislativas de novembro do ano passado, que deram maioria aos republicanos no Senado e na Câmara dos Deputados.

O presidente também defendeu a igualdade de gênero, destacando que homens e mulheres devem ter salários iguais, e falou do desafio de enfrentar as alterações climáticas.

Sobre o cenário interno, ele lembrou que o país atravessou uma crise em 2008 e que agora passa por um momento de recuperação e de crescimento.

O discurso do Estado da União é uma tradição política nos Estados Unidos e foi feito pela primeira vez em janeiro de 1790, pelo então presidente George Washington.

sábado, 21 de março de 2015

Aquífero poderia abastecer planeta por 250 anos.

Imagine uma quantidade de água subterrânea capaz de abastecer todo o planeta por 250 anos. Essa reserva existe, está localizada na parte brasileira da Amazônia e é praticamente subutilizada.

Até dois anos atrás, o aquífero era conhecido como Alter do Chão. Em 2013, novos estudos feitos por pesquisadores da UFPA (Universidade Federal do Pará) apontaram para uma área maior e nova definição.

"A gente avançou bastante e passamos a chamar de SAGA, o Sistema Aquífero Grande Amazônia. Fizemos um estudo e vimos que aquilo que era o Alter do Chão é muito maior do que sempre se considerou, e criamos um novo nome para que não ficasse essa confusão", explicou o professor de Instituto de Geociência da UFPA, Francisco Matos.

Segundo a pesquisa, o aquífero possui reservas hídricas estimadas preliminarmente em 162.520 km³ --sendo a maior que se tem conhecimento no planeta. "Isso considerando a reserva até uma profundidade de 500 metros. O aquífero Guarani, que era ao maior, tem 39 mil km³ e já era considerado o maior do mundo", explicou Matos.

O aquífero está posicionado nas bacias do Marajó (PA), Amazonas, Solimões (AM) e Acre --todas na região amazônica-- chegando até a bacias sub-andinas. Para se ter ideia, a reserva de água equivale a mais de 150 quadrilhões de litros. "Daria para abastecer o planeta por pelo menos 250 anos", estimou Matos. 

O aquífero exemplifica a má distribuição do volume hídrico nacional com relação à concentração populacional. Na Amazônia, vive apenas 5% da população do país, mas é a região que concentra mais da metade de toda água doce existente no Brasil.

Por conta disso, a água é subutilizada. Hoje, o aquífero serve apenas para fornecer água para cidades do vale amazônico, com cidades como Manaus e Santarém. "O que poderíamos fazer era aproveitar para termos outro ciclo, além do natural, para produção de alimentos, que ocorreria por meio da irrigação. Isso poderia ampliar a produção de vários tipos de cultivo na Amazônia", afirmou Matos.

Para o professor, o uso da água do aquífero deve adotar critérios específicos para evitar problemas ambientais. "Esse patrimônio tem de ser visto no ciclo hidrológico completo. As águas do sistema subterrâneo são as que alimentam o rio, que são abastecidos pelas chuvas. Está tudo interligado. É preciso planejamento para poder entender esse esquema para que o uso seja feito de forma equilibrada. Se fizer errado pode causar um desequilíbrio", disse.

Mesmo com a água em abundância, Matos tem pouca esperança de ver essa água abastecendo regiões secas, como o semiárido brasileiro. "O problema todo é que essa água não tem como ser transportada para Nordeste ou São Paulo. Para isso seriam necessárias obras faraônicas. Não dá para pensar hoje em transportar isso em distâncias tão grandes", afirmou.

sexta-feira, 20 de março de 2015

A mulher no Judaísmo

Resumo

O lugar da mulher no Judaísmo variou segundo o contexto histórico, social, político e religioso. Ele se expressa em todos os campos da vida cotidiana, desde as diferentes rezas da liturgia até a divisão das tarefas no âmbito público e particular, passando pela liberação da obrigação do cumprimento de alguns preceitos, o que determina - segundo a tradição estabelecida por homens -, as prioridades a que as mulheres deveriam dedicar o seu tempo.

Acompanhando as mudanças do papel da mulher na sociedade em geral, os movimentos religiosos liberais judaicos permitem a participação igualitária da mulher judia em todos os níveis, inclusive a ordenação de mulheres rabinas. Várias já estão servindo na América do Sul, sendo o Brasil um dos países pioneiros, tanto na formação de rabinas como na contratação de tais profissionais.

O lugar da mulher dentro do Judaísmo deve ser analisado à luz do contexto histórico em que se desenvolveu. Na época bíblica, as mulheres dos Patriarcas eram as Matriarcas, mulheres ouvidas, respeitadas e admiradas. Havia mulheres profetisas e juízas. As mulheres estavam presentes no Monte Sinai no momento em que Deus firmou o Seu Pacto com o povo de Israel. Participavam ativamente das celebrações religiosas e sociais, dos atos políticos. Atuavam no plano econômico. Tinham voz, tanto no campo privado como no público.

Com o decorrer do tempo e por força das influências estrangeiras, especialmente a grega, foram excluídas de toda atividade pública e passaram a ficar relegadas ao lar. Essa situação das práticas cotidianas daquela época foi expressa nas leis judaicas então estabelecidas e permanece a mesma até hoje.

As revoluções sociais e a evolução do papel da mulher que se processaram ao longo do século XX levaram a mulher judia a exigir igualdade entre os gêneros em todas as fases da vida judaica, tanto na sinagoga quanto no lar. No entanto, nem todas as correntes religiosas judaicas, nem a sociedade em geral, ainda estão prontas para isso.

1. "Que não me fizeste mulher"

Começar cada dia escutando os homens disserem "Bendito sejas Tu, Eterno, nosso Deus, Rei do Universo que não me fizeste mulher" não é agradável para mulher alguma que, por sua vez, deve proferir com "resignação" as palavras "Bendito sejas Tu, Eterno, nosso Deus, Rei do Universo, que me fizeste segundo Tua vontade".

Essas bênçãos fazem parte da liturgia tradicional judaica dentro do conjunto de "agradecimentos a Deus" conhecido como "Bênçãos matinais" e que são recitadas toda manhã ao despertar.

Essas bênçãos não são consideradas problemáticas apenas para a nossa geração, posterior à "revolução feminina", mas incomodaram também as gerações que nos precederam. E as explicações ou "soluções" tentadas em diferentes épocas não foram suficientemente convincentes.

A história dessas bênçãos - e as reações que geraram em mulheres e homens judeus - poderia servir de roteiro do lugar das mulheres dentro do Judaísmo em diferentes momentos históricos.

No Talmud de Babilônia - Tratado "Menachot" 43 B está escrito:

O Rabi Meir disse: O homem deve recitar três bênçãos cada dia, e elas são: Que me fizeste (do povo de) Israel; que não me fizeste mulher; que não me fizeste ignorante

Segundo o rabino contemporâneo Joel H. Kahan,[1] essa bênção se originou do dito helênico popular, citado por Platão e Sócrates, que diz:

Há três bênçãos para agradecer o destino:
A primeira - que nasci ser humano e não animal;
A segunda - que nasci homem e não mulher;
A terceira - que nasci grego e não bárbaro.

Mesmo que a ordem não seja exatamente a mesma - e os gregos agradeciam ao destino e os judeus, a Deus -, a semelhança é flagrante: o agradecimento grego pelo fato de "ser humano" tem seu paralelo judaico em "não ser ignorante"; "não ser bárbaro" era para os gregos tão importante quanto para os judeus agradecer por ser parte do povo de Israel; e "ser homem e não mulher" era central em ambas as culturas, onde a mulher ocupava um lugar secundário, especialmente na vida pública.

Apesar de, na época bíblica, a mulher participar ativamente de todas as manifestações da vida social,[2] política, econômica e religiosa, ela desaparece do cenário público no período talmúdico (século III a século VI da Era Comum).

Essa concepção do lugar da mulher na sociedade judaica na época do Talmud[3] - época na qual foram estabelecidas as regras do dia-a-dia judaico, baseadas na interpretação e análise dos textos bíblicos pelos rabinos (exclusivamente homens) -, recebe influência direta da antiga sociedade grega em que estava inserida.[4] Nela, a mulher praticamente não tinha vida social, já que estava afastada dos lugares e acontecimentos públicos, entre eles, os religiosos.

2. A "propriedade" e as "prioridades" do tempo da mulher

Os Sábios do Talmud interpretaram o versículo "Toda a glória da filha do rei na sua casa" (Salmo 45:14), ensinando que a honra de uma mulher exige que ela fique na sua casa, cumprindo sua função essencial de ter filhos e de facilitar ao seu marido o cumprimento dos preceitos.

Seguindo essa lógica, as mulheres eram definidas pelo aspecto biológico, como mães procriadoras; do ponto de vista sociológico, eram dependentes, primeiro do pai e depois do marido; e, sob o prisma psicológico, eram incapazes de dedicar-se a temas tidos sérios ou importantes, exclusivos dos homens.[5]

Portanto, a presença de uma mulher num lugar público - na rua, no mercado, nos Tribunais, nas casas de estudo, nos eventos públicos ou nos cultos religiosos -, era considerada uma ofensa à sua dignidade de mulher.

A priorização das tarefas femininas voltadas para o lar - tomar conta da casa, das crianças e do marido - terá como conseqüência direta a limitação da função religiosa; portanto, a mulher fica liberada da obrigação do cumprimento de determinados preceitos judaicos que têm um momento especifico para serem cumpridos.[6]

Em uma tradição onde a obrigação de cumprir os preceitos divinos é considerada uma grande honra, prova da escolha e do amor divinos, a isenção da mulher de certas obrigações se cobre de outros significados.

Determinar o que fazer com o tempo é símbolo de liberdade que o homem pode usar conforme seu entendimento. O homem é livre para escolher dedicar seu tempo a Deus, a mulher não é livre de fazê-lo (na prática, mulheres e escravos têm as mesmas obrigações e cumprem os mesmos preceitos).

Dentro desse conceito, a decisão de liberar as mulheres do cumprimento dos preceitos de hora marcada é uma demonstração da grandiosidade do mesmo Deus que cede aos homens o seu privilégio de ser o dono do tempo das mulheres.[7]

Elas ficam liberadas de cumprir os preceitos divinos, mas permanecem subordinadas - em tempo e ações - ao marido, o lar, as crianças.

Elas são donas da casa, eles são donos delas. De fato, até em hebraico a palavra "marido" é baal, que significa "dono, patrão, proprietário e donos do mundo."

3. "Por respeito à congregação"

Contrariando a exclusão vigente e popularmente conhecida dentro da tradição judaica, a Halachá - lei judaica - permite explicitamente às mulheres (e menores de idade), serem convidadas para participar da leitura pública da Torá (primeiros cinco livros da Bíblia) durante as rezas do Shabat (sábado).

Mas a seguinte contrapartida consta do Talmud - Tratado Meguilá 23-A:

Ensinaram nossos Rabinos: Todos podem fazer parte da contagem dos sete (que são chamados para ler a Torá no Shabat), até um menor de idade e até uma mulher. Mas disseram os Sábios: Uma mulher não vai ler a Torá por respeito ao público.

O respeito ao público, argumento muitas vezes substituído pela expressão "a honra da congregação", adquire, no contexto daquela época, o seguinte significado:

Ler a Torá no marco do serviço religioso requer conhecimento e estudo especiais, pois além de ser em hebraico, a leitura é feita com uma entonação específica que exige uma preparação prévia.

Antigamente, a pessoa que ia ser convidada para ler a Torá em público durante o serviço religioso do Shabat, era avisada com antecedência para ter a possibilidade de preparar a leitura. Como em geral quem tinha acesso ao estudo, facilidade e tempo para se preparar eram os homens, o convite a uma mulher seria interpretado como se naquela congregação não houvesse sete homens aptos a ler a Tora,[8] o que seria uma vergonha para a mesma (isto é, para os homens).

Assim, se a mulher já estava "liberada" de alguns preceitos, essa segunda razão - evitar a desonra da congregação - a impedia de cumprir aqueles preceitos que, mesmo sem ser obrigada, ela poderia - se assim o desejasse - escolher cumprir.

4. Novas interpretações

A palavra hebraica que define o conjunto de leis judaicas é "Halachá", que vem da raiz do verbo "lalechet", que significa "andar".

O estabelecimento da lei judaica é um processo dinâmico que exige - e sempre teve!-, com o decorrer do tempo, mudanças e adaptações.

Como foi descrito até aqui, as regras que têm a ver com o papel da mulher no Judaísmo receberam diferentes influências - sociais e religiosas - da época e do lugar em que foram analisadas e determinadas.

Baseados no conceito de fazer mudanças conforme os avanços do mundo e as exigências da sociedade, mas sem perder a essência da tradição judaica milenar, os movimentos religiosos judaicos mais liberais - movimentos Conservador, Reformista, e Reconstrucionista - tiveram a coragem de aceitar o desafio e tomaram a iniciativa de voltar a estudar as fontes em busca de respostas.

Essas, na verdade, já existiam há muito tempo, mas, por razões subjetivas ou circunstâncias determinantes, foram deixadas de lado. Era só uma questão de revivê-las. Foi o que fizeram homens e mulheres que procuram uma vida judaica plena e significativa dentro da sociedade moderna em que vivem.

Como conseqüência desses estudos, por exemplo, muitos livros de orações substituíram as bênçãos cotidianas "que não me fizeste mulher", - recitadas pelos homens -, e "que me fizeste segundo Tua vontade" -, proferidas pelas mulheres -, por uma bênção única pronunciada por ambos os gêneros: "Bendito Sejas Tu, nosso Deus, Rei do Universo que me fizeste à Tua imagem". Essa bênção está baseada no conceito bíblico que mulheres e homens foram todos criados à "imagem e semelhança de Deus."[9]

Por outro lado, quando foram analisadas as fontes dos preceitos que têm um horário determinado para serem cumpridos, foi sublinhado o fato que a mulher está "liberada" de cumpri-los, mas não "proibida", como interpretado por Rabinos mais radicais. Portanto, a condição de "liberada" significa que, embora não tenha determinadas obrigações, a mulher tem a liberdade de assumir ações e compromisso de que foi liberada, se assim o desejar.

E se são revistas as prioridades a que a mulher "deve" dedicar seu tempo, verifica-se hoje que as tarefas do lar são compartilhadas por mulheres e homens de maneira igualitária. É mister mencionar, também, a vasta gama de inventos e facilidades que proporcionam à mulher moderna a possibilidade de se organizar de forma a manejar os seus tempos como o preferir. Além de poder contar com a ajuda de outras pessoas, ampliando assim a sua liberdade.

Finalmente, a mulher conseguiu tantos avanços na sociedade atual que praticamente não existem tarefas, profissões ou atividades de que não participe. Portanto, se a mulher conquistou títulos acadêmicos ou exerce altos cargos e funções em empresas públicas e privadas; se a mulher tem importante participação em todos os segmentos da sociedade ao lado dos homens, não há mais porque ninguém se envergonhar quando isso acontece também na sinagoga. O contrário é que deveria ser considerado um desrespeito à congregação pelo fato de recusar às mulheres o direito à igualdade de participação também dentro da religião.

5. Mulheres Rabinas

Seguindo a lógica de que a mulher judia pode assumir obrigações religiosas mesmo onde estaria isenta, e que - assim como acontece em todos os campos da sociedade atual - almeja participação igualitária nos campos rituais e religiosos, muitas mulheres judias reclamaram o direito de estudar nos mais altos níveis acadêmicos religiosos a fim de se formar como rabinas e desempenhar as ações de líderes religiosas e comunitárias.

Os movimentos ortodoxos, -segmentos mais tradicionalistas do Judaísmo-, não admitem a formação de mulheres como rabinas, baseando-se na crença de que aHalachá (o conjunto de leis judaicas) é imutável, e que, como não houve rabinas no passado, não deveria haver no presente ou no futuro. E, embora haja mulheres ortodoxas que anseiam por uma ação mais participativa no seio da religião, esbarram nas proibições dos seus rabinos que citam fontes cuja interpretação desemboca na proibição.

Os movimentos mais liberais por sua vez, - que acreditam no dinamismo da lei judaica -, analisaram essas mesmas fontes e chegaram à conclusão de que não há objeções diretas para ensinar e formar mulheres como rabinas. Foi justamente desses movimentos que surgiram as primeiras mulheres com qualificação para desenhar os rumos de uma nova carreira e desempenhar todas as tarefas do sacerdócio.

Mesmo assim, avanços práticos e progressos na interpretação de uma tradição religiosa tão antiga como a judaica, não foram - nem são - facilmente assimiláveis pela maioria dos membros do povo judeu. A repetição de costumes herdados de geração em geração, que desconhece a essência ou o significado original dos mesmos, acaba tendo força de lei. Muitas pessoas não têm interesse em conhecer o processo histórico, social e o embasamento lógico pelo qual essas leis ou costumes passaram até adquirir a forma com que chegaram até nós, e todos nós saímos perdendo com esta falta de vontade de aprender, porque o conhecimento de antecedentes e mutações ajudaria sem dúvidas a compreender o quanto a lei judaica é dinâmica. Prepararia as pessoas a melhor aceitar as mudanças que permitem a adaptação do Judaísmo milenar ao mundo moderno, o que é, simplesmente, a continuidade do processo "tradicional" judaico de dar respostas às novas perguntas suscitadas por cada geração.

6. As mulheres judias na América do Sul

Na moderna sociedade sul-americana ainda se observam vestígios do machismo que relega as mulheres a um segundo nível.

Mesmo que em outros lugares do mundo, principalmente nos Estados Unidos e Israel, onde até na ortodoxia judaica as mulheres estão conseguindo cada vez mais espaços no ritual e na liderança religiosa (alguns movimentos ortodoxos concederam às mulheres o direito de conduzir serviços religiosos e ler a Torá, contanto que seja em grupos só de mulheres), na América do Sul - e dentro dela, no Brasil -, a maioria das comunidades ainda não está "pronta" para aceitar a participação da mulher em todos os aspectos religiosos e comunitários.

Mesmo em comunidades judaicas identificadas com os movimentos mais liberais do Judaísmo - aqueles que permitiriam a participação igualitária da mulher dentro da religião judaica -, as resistências são numerosas. Não se registram restrições quanto à participação em cursos, nem ao estudo. Mas a inclusão na prática religiosa ainda é lenta. Só aos poucos, em algumas comunidades,[10] as mulheres são convidadas a ler a Torá; lideram serviços religiosos e usam talit(manto ritual), um daqueles preceitos "de tempo determinado", do qual - originalmente - estariam "liberadas". No entanto, o uso de tefilin (filactérios), - preceito que entra na mesma categoria -, ainda não está tão difundido.

Existem também cerimônias e rituais recriados para as mulheres, como por exemplo o Simchat Bat, quando a menina recebe, na sinagoga, seu nome judaico. O paralelo masculino tradicional é o Brit Milá, a circuncisão do menino que recebe durante a cerimônia seu nome judaico.

Bat Mitzvá, comemoração da maturidade religiosa da menina aos 12 anos, quando lê a Torá, revestida do talit, igual ao Bar Mitzvá que o menino faz aos 13 anos. Há ainda o acréscimo dos nomes das Matriarcas do povo judeu - Sara, Rebeca, Rachel e Lea - cada vez que, na liturgia, são recitados os nomes dos Patriarcas Abraham, Isaac e Jacob.

Enfim, são muitas as pequenas conquistas, ações de um dia-a-dia que confirma o novo papel das mulheres, ativistas em número cada vez maior, que ocupam espaços e assumem responsabilidades até bem pouco tempo exclusivas dos homens. Inclusive em postos de liderança comunitária, exercendo até mesmo a presidência de congregações.

Porém, a mulher como rabina ainda não tem seu espaço igualitário dentro da sociedade judaica sul-americana em geral. Passos muito lentos foram dados no século passado: se a primeira rabina reformista, Regina Jonas, graduou-se na Alemanha no ano de 1935, a segunda leva só ocorrerá quase 40 anos mais tarde, nos Estados Unidos. As primeiras rabinas norte-americanas foram formadas pelo Movimento Reformista nos anos 70 e pelo Movimento Conservador nos anos 80. No continente sul-americano será apenas a partir de 1994 que se formam as primeiras rabinas: duas no Seminário Rabínico Latino-americano em Buenos Aires - Analia Bortz e Margit Baumatz -, e uma brasileira, - Lia Bass - formada pelo Jewish Theological Seminary de Nova York, todas pertencentes ao Movimento Conservador.

Mas, mesmo que a etapa de estudos da formação rabínica seja plenamente igualitária, ao sair para o mercado de trabalho, na América do Sul ainda se observam diferenças entre ambos sexos. Algumas rabinas são contratadas para assumir certos setores da comunidade, geralmente relacionados com ensino ou ação social; outras são responsáveis por tarefas comunitárias, sem poder dizer ou aparecer oficialmente como rabinas; e mesmo aquelas que chegam mais longe, o mais alto cargo que conseguem é o de rabina assistente de um rabino homem.

Geralmente, a desculpa para as dificuldades das rabinas em achar trabalho e desempenhar suas tarefas rabínicas é que as comunidades ainda não estão preparadas para serem lideradas por mulheres. A bem da verdade, é um dado real da sociedade sul-americana agravado, no âmbito da comunidade judaica por uma tradição milenar que se adapta difícil e lentamente a mudanças.

E não são só os homens que não estão prontos para esta nova situação. Muitas vezes são as próprias mulheres que se opõem aos avanços. Por conformismo, comodidade, medo e, principalmente, desconhecimento, não reclamam o seu lugar e os seus direitos dentro da prática religiosa judaica e nas suas funções comunitárias.

Chegar à igualdade é responsabilidade de todos. Das mulheres, a responsabilidade é de aprender, conhecer, saber e reclamar com força e determinação seu lugar, exigir os seus direitos. Dos homens, especialmente daqueles que ocupam cargos de liderança, a responsabilidade é de educar e preparar as pessoas, as comunidades e a sociedade em geral para aceitar a participação igualitária de mulheres e homens em todos os campos da sociedade, e no nosso caso específico, dentro da religião judaica.

No Brasil, tenho o privilégio de ser a primeira rabina a desempenhar essa função. Desde setembro de 2003, fui contratada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro - ARI -, uma comunidade totalmente igualitária. Mas, a partir de meados de ano 2005, outras rabinas brasileiras ocuparão novos púlpitos. Entre elas, Luciana Pajecki Lederman, que trabalhará na Comunidade Shalom de São Paulo.

Apenas quando todos - mulheres e homens - não nos sentirmos mais à vontade numa sociedade que não seja plenamente igualitária, é que estaremos mais perto de alcançar a igualdade total.

Não há dúvida que, segundo famoso dito anônimo:

A mulher é tão diferente do homem, quanto o homem o é da mulher.
Nem mais, nem menos.
Aceitar as nossas diferenças, é reconhecer a nossa igualdade.

Bibliografia

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WEISS-GOLDMAN, Ruchama. "Ani rotze likroch otach bitfilin: Nashim bemitzvot shel gvarim". In: ARIEL, David Ioel; LEIBOVICH, Maia; MAZOR, Ioram (Orgs.) Baruch she asani isha. Tel Aviv: Ed. Yedioth Ahronot, 1999. p. 105-120.


quarta-feira, 18 de março de 2015

O papel da Mulher no Islã.

A lista de horrores já soa, a esta altura, familiar. Meninas proibidas de ir à escola e condenadas ao analfabetismo. Mulheres impedidas de trabalhar e de andar pelas ruas sozinhas. Milhares de viúvas que, sem poder ganhar seu sustento, dependem de esmolas ou simplesmente passam fome. Mulheres com os dedos decepados por pintar as unhas. Casadas, solteiras, velhas ou moças que sejam suspeitas de transgressões - e tudo o que compõe a vida normal é visto como transgressão - são espancadas ou executadas. E por toda parte aquelas imagens que já se tornaram um símbolo: grupos de figuras idênticas, sem forma e sem rosto, cobertas da cabeça aos pés nas suas túnicas - as burqas. Quando o Afeganistão entrou no noticiário por aninhar os terroristas que bombardearam o World Trade Center e o Pentágono, essas cenas de mulheres tratadas como animais voltaram a espantar o Ocidente. Elas viviam em regime de submissão absoluta havia muito tempo, mas a situação ficou ainda pior desde que a milícia Talibã tomou o poder no país, em 1996. 

O cenário de Idade Média não era uma prerrogativa afegã. Trata-se de uma avenida permanentemente aberta aos regimes islâmicos que desejem interpretar os ensinamentos do Corão a ferro e fogo. A isso se dá o nome de fundamentalismo. Há países de islamismo mais flexível, como o Egito, e outros de um rigor extremo, como a Arábia Saudita. Para o pensamento ortodoxo muçulmano, a mulher vale menos do que o homem, explica Leila Ahmed, especialista em estudos da mulher e do Oriente Próximo da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos. "Um 'infiel' pode se converter e se livrar da inferioridade que o separa dos 'fiéis'. Já a inferioridade da mulher é imutável", escreveu Leila num ensaio sobre o tema, em 1992. 

Por trás dessa situação há uma ironia trágica. A exclusão feminina não está presente nas fundações do islamismo, mas apenas no edifício que se erigiu sobre elas. O Corão, livro sagrado dos muçulmanos, contém versículos dedicados a deixar claro que, aos olhos de Alá, homens e mulheres são iguais. O mais importante deles é o que está reproduzido nesta página. Ele mostra que Deus espera a mesma fidelidade de ambos os sexos, e que a premiará de forma idêntica. O Corão é o mandamento divino, e não uma interpretação qualquer da vontade de Deus. Como se explica, então, que idéias tão avançadas tenham se perdido, para dar lugar a Estados religiosos em que as mulheres têm de viver trancafiadas e cobertas por véus, em pleno século XXI? As respostas têm de ser buscadas muito longe, no próprio nascimento do Islã. 

Casamento aos 9 - Quando tinha 25 anos, Maomé se casou com Khadidja, uma viúva rica que o empregara para supervisionar sua caravana de comércio entre a cidade de Meca, na atual Arábia Saudita, e a Síria. A própria Khadidja, de 40 anos, propôs as núpcias, num arranjo que não era assim tão incomum. Naquela época, a Arábia era uma das poucas regiões do Oriente Médio em que o casamento comandado pelo marido ainda convivia com outros tipos de união. Acredita-se que havia até mulheres que tinham vários maridos - e muitas viviam com considerável autonomia pessoal e financeira. Era o caso de Khadidja, uma negociante experiente. Alguns anos depois de seu casamento, Maomé começou a receber o que seriam revelações de Deus. Julgando-se louco, procurou o conselho da esposa. Ela dispersou suas dúvidas e, para provar sua confiança no marido, converteu-se à nova religião. O primeiro muçulmano foi, assim, uma mulher. Quando Khadidja morreu, Maomé entrou em vários casamentos simultâneos. A mais célebre de suas esposas é Aisha, que tinha 9 anos na ocasião das bodas. Segundo alguns relatos, ela brincava no quintal quando foi chamada para dentro de casa. Lá, encontrou o noivo e foi posta sobre seus joelhos. Os pais da menina se retiraram, e o casamento teria se consumado ali, na casa paterna. 

Aisha é uma figura central nesses primeiros anos do Islã (cujo calendário começa a ser contado no ano 622 da era cristã). Inteligente, articulada e dona de uma memória prodigiosa, ela foi a mais querida e respeitada das mulheres do profeta - embora todas partilhassem de seus ensinamentos e apoiassem ativamente sua causa. Eram, aliás, tão assediadas por pessoas em busca de favores e influência que talvez por isso tenham sido as primeiras muçulmanas (e, por algum tempo, as únicas) a usar véu e ficar recolhidas em casa - e, ainda assim, só nos últimos anos da vida de Maomé. Aisha tinha 18 anos quando Maomé morreu. Nas quase cinco décadas seguintes de sua vida, ela foi inúmeras vezes consultada em pontos importantes da religião, da política e também da conduta do profeta. Isso porque Maomé legou aos muçulmanos o Corão, que é quase um tratado ético, mas não teve tempo de regulamentar todos os princípios que deveriam reger o cotidiano dos convertidos. Quando vivo, podia ser consultado a qualquer momento. Depois de sua morte, tornou-se tarefa de seus seguidores próximos transferir da memória para a escrita as palavras e ações do profeta. A intenção era que o conjunto servisse de guia aos fiéis. Esses "ditados" são os Hadith. Juntos, eles compõem a tradição maior, a Sunna. Com as complicações surgidas por causa da sucessão de Maomé, os Hadith tornaram-se uma ferramenta crucial. Não era difícil que alguém sacasse um deles para resolver um impasse. E, é claro, não demorou para que muitos fossem forjados. Cerca de 200 anos depois da morte do profeta, um respeitado historiador do islamismo, al-Bukhari, contou 7 275 Hadith genuínos, contra quase 600.000 inventados. Mesmo os tidos como verdadeiros merecem algum escrutínio, argumentam estudiosos como a marroquina Fatima Mernissi. 

Fatima investigou a origem dos Hadith que são as pedras angulares para justificar a inferioridade feminina no Islã. Um deles é o que compara as mulheres aos cães e jumentos na sua capacidade de perturbar a oração. Fatima concluiu que o narrador desse Hadith, Abu Hurayra, era um homem com sérios problemas de identidade sexual e um feroz opositor de Aisha, que amiúde o repreendia em público por sua mania de inventar Hadith. Nessa ocasião, ela corrigiu Hurayra, dizendo que o profeta costumava rezar perto de suas mulheres sem nenhum medo de que elas o atrapalhassem. Mas sua versão não passou à história. Outro Hadith que todo muçulmano sabe de cor é o que diz que "aqueles que confiam seus negócios a uma mulher nunca conhecerão a prosperidade". Segundo Fatima Mernissi, o surgimento desse Hadith é ainda mais misterioso. Abu Bakra, seu narrador, lembrou dessa frase do profeta (e pela primeira vez) mais de vinte anos depois de supostamente ela ter sido dita. Curiosamente, veio-lhe à memória (assim ele afirmou) no momento em que Aisha sofreu sua grande derrocada. A viúva do profeta virou o centro de uma crise quando, ao suspeitar de um golpe, pegou em armas para intervir numa das etapas da sucessão de Maomé. Na batalha que se seguiu, perdeu 13.000 de seus soldados e saiu derrotada, em vários sentidos. Foi, primeiro, criticada por ter se exposto de uma maneira inconveniente a uma mulher. E, com a perda de prestígio, teve muitos de seus comentários e correções sobre importantes Hadith suprimidos ou ignorados - como no caso daquele que fala dos cães e jumentos. Esses são só alguns exemplos de como a voz feminina, tão valorizada nos primórdios do Islã, começou a se silenciar. 

Ideais de pureza - A pesquisadora Leila Ahmed tem mais explicações para a opressão das mulheres no Islã. Os muçulmanos, diz ela, costumavam manter os hábitos das regiões onde se firmavam, desde que esses estivessem em sintonia com seu pensamento. O restante era descartado. Na Arábia, por exemplo, eliminaram as outras formas de casamento para que prevalecesse apenas o patriarcal. Quando conquistaram a região que hoje abarca o Irã e o Iraque, assimilaram a prática de formar haréns, o uso disseminado do véu para as mulheres e, principalmente, os mecanismos de repressão feminina que eram uma característica marcante dos povos locais. Foi nesse ambiente altamente misógino que, nos séculos seguintes, o direito islâmico foi elaborado. Separado em escolas que diferem em vários pontos, mas se apresentam como sendo timbres diversos de uma só voz, esse direito é dado como absoluto e imutável. Seus princípios não podem ser questionados nem relativizados à luz de traços culturais. Por isso são, até hoje, um instrumento útil para calar as mulheres em países nos quais vigora o regime teocrático. Um dado complicador é que as muçulmanas têm até hoje um conhecimento muito vago da lei divina. Aderem ao fundamentalismo atraídas pelos ideais de pureza da religião e, quando ele é instaurado, são surpreendidas por seus rigores - a exemplo do que ocorreu no Irã dos aiatolás. 

Não é pequena a importância de estudos históricos como os de Leila Ahmed e Fatima Mernissi. Eles ajudam a demonstrar que a liberdade feminina não equivale à ocidentalização e à aculturação - ou, em outras palavras, à traição do Islã. Pelo contrário: é possível ser, ao mesmo tempo, uma muçulmana livre e uma muçulmana fiel. Se a democracia chegou para as mulheres que vivem sob a égide da civilização judaico-cristã, que também não é lá muito célebre por sua visão feminista do mundo, não há por que ela não possa ser almejada pelas muçulmanas que se orgulham de sua religião. Em tempo: um dia, um seguidor de Maomé lhe indagou qual a pessoa que ele mais amava no mundo. "Aisha, minha mulher", respondeu o profeta. Irritado com uma resposta assim, no feminino, o curioso insistiu: "E qual o homem que o senhor mais ama?". Maomé não hesitou. "Abu Bakr. Porque ele é o pai de Aisha."

Dica pra prova

domingo, 15 de março de 2015

Como foi o Impeachment do Presidente Collor.

O processo que culminou com a renúncia do presidente Fernando Collor de Mello, em 29 de dezembro de 1992, foi resultado de meses de investigação parlamentar provocada por denúncias de corrupção divulgadas pela imprensa. Ainda candidato, em 1989, o ex-governador de Alagoas era bem diferente dos políticos da época: relativamente jovem (39 anos), fazia cooper, andava de jet-ski e estampava frases de impacto, como "Não fale em crise. Trabalhe", em suas camisetas.

Quando assumiu, em março de 1990, sua popularidade começou a ficar abalada ao confiscar o saldo das poupanças bancárias a fim de frear a inflação. Cada pessoa ficou com apenas 50 mil cruzeiros (hoje, cerca de R$ 6 mil) disponíveis e muita gente empobreceu da noite para o dia. Não deu certo: a inflação continuou crescendo e, em 1991, já passava dos 400% acumulados no ano, quando surgiram os primeiros escândalos de corrupção ligados a Collor.

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QUEDA LIVRE

Fraudes financeiras provocaram a cassação do primeiro presidente eleito por voto direto após 30 anos de ditadura.

1. Pedro Collor, irmão do presidente, concedeu entrevista à revista VEJA, em maio de 1992, denunciando um esquema de lavagem de dinheiro no exterior comandado por Paulo César (PC) Farias, tesoureiro da campanha eleitoral de 1989. Fernando acusou o irmão de insanidade mental - desmentida por exames.

2. O Congresso Nacional criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as denúncias. Vieram à tona esquemas como a Operação Uruguai: empréstimos fraudulentos para financiar a campanha de 1989. Além disso, contas fantasma operadas por PC financiavam a reforma da Casa da Dinda, onde Collor morava.

3. As ligações do presidente com os golpes de PC ficaram evidentes. Um carro Fiat Elba para uso pessoal do presidente foi comprado com dinheiro vindo das contas fantasma do tesoureiro de campanha. Em agosto, o motorista Eriberto França contou à revista Istoé como levava contas de Collor para serem pagas por empresas de fachada de PC.

4. Em busca de apoio, o presidente fez um pronunciamento pedindo para que a população fosse às ruas, em 16 de agosto, vestida com as cores da bandeira nacional. O povo não atendeu e saiu vestido de preto, em protesto. Entre os manifestantes, destacaram-se grupos de estudantes batizados pela imprensa de "caras-pintadas".

5. Em 24 de agosto, um relatório da CPI atestou que US$ 6,5 milhões haviam sido transferidos irregularmente para financiar gastos do presidente. A insatisfação popular aumentou e, em 29 de setembro, o impeachment foi aprovado por 441 dos 509 deputados. Collor foi afastado e substituído por Itamar Franco, seu vice.

6. Collor foi, então, julgado pelo Senado Federal. Em 29 de dezembro, o presidente renunciou para tentar engavetar o processo e preservar seus direitos políticos. No entanto, por 76 votos a 3, os senadores condenaram o presidente, que não poderia concorrer em eleições pelos oito anos seguintes.

CURIOSIDADES:

- Também foram descobertas compras superfaturadas na Legião Brasileira de Assistência, entidade do governo presidida pela primeira-dama, Rosane Collor.

- Collor foi eleito pelo Partido da Reconstrução Nacional, criado só para abrigar sua candidatura. Em 2000, o PRN virou PTC (Partido Trabalhista Cristão).

- A renúncia foi ofuscada no noticiário pelo assassinato da atriz Daniela Perez por Guilherme de Pádua. A dupla contracenava na novela De Corpo e Alma, escrita por Glória Perez, mãe de Daniela.

- Em 17 de setembro, ocorreu a maior manifestação contra Collor, com 750 milpessoas lotando o vale do Anhangabaú, em São Paulo.

Que fim levaram?Mortes misteriosas e reviravoltas políticas marcam a trajetória dos principais personagens do impeachment

FERNANDO COLLOR

Absolvido criminalmente pelo Supremo Tribunal Federal em 1994. Em 2006, foi eleito senador - cargo que ocupa até hoje (dezembro de 2012) -, representando o estado de Alagoas.

PEDRO COLLOR

Morreu com 42 anos, em 1994, vítima de um câncer cerebral. A mãe, Leda, sofreu um AVC durante o auge da crise e ficou três anos em coma, até morrer, em 1995.

PC FARIAS

Condenado por sonegação fiscal, falsidade ideológica e outros crimes. Em 1996, em liberdade condicional, foi achado morto com a namorada - ambos baleados - em circunstâncias misteriosas.

OPOSITORES

"Estrelas" da CPI do impeachment acabaram passando de juízes a julgados, caso dos então deputados José Dirceu e José Genoíno, condenados no escândalo do Mensalão.


Maciços Antigos

Os maciços antigos tratam-se de uma urna das primeiras formações rochosas terrestres, constituindo-se em blocos imensos de rochas antigas, conhecidos também como escudos. São feitos por rochas cristalinas, magmáticas e metamórficas, formadas na era Proterozóica. Por isso, apresentam maior resistência à erosão, embora já tenham sido bastante desgastados, o que pode ser notado pelo seu formato mais arredondado.

Principais maciços antigos do mundo

Agora vamos identificar os principais maciços antigos da Terra:

Europa 

Os maciços antigos são encontrados sobretudo na porção centro-norte do continente. De modo geral, os maciços apresentam grande importância econômica, pois abrigam extensas reservas de minérios. Na Europa, porém, são particularmente pobres. As raras exceções são algumas reservas expressivas de minério de ferro. Os mais importantes maciços antigos europeus são os:

Alpes Escandinavos

Situados na península do mesmo nome, estendem-se pela Noruega e Suína. Sua importância econômica reside na ocorrência de algumas jazidas de minério de ferro.

Montes Urais 

Têm importância política, pois separam a Rússia europeia da Rússia asiática. Apresentam também algumas jazidas minerais de grande importância comercial.

Montes Pepinos

Ocupam boa parte da Grã-Bretanha. Durante a Revolução Industrial, suas reservas de ferro foram intensamente exploradas e, hoje, estão praticamente esgotadas.

América

Os maciços antigos concentram-se na porção leste. Na América do Norte, são destaques:

Planalto do Liberador 

Situado na península do mesmo nome, no Canadá. Apresenta muitos rios planálticos, com grande potencial hidrelétrico.

Apalaces 

Posicionados paralelamente à costa atlântica norte-americana, estão em parte recobertos por rochas sedimentares com grandes jazidas de carvão mineral. Esse recurso energético tem sido utilizado desde os primórdios da industrialização dos Estados Unidos.

Platô dos Grandes Lagos 

Envolve os Grandes Lagos, que fazem a fronteira natural entre os Estados Unidos e o Canadá. É importante do ponto de vista econômico por possuir grandes reservas de minério de ferro, que  ao lado do carvão mineral dos Apalaçais  impulsionou a industrialização dos Estados Unidos a partir do século XVIII.

Maciço das Guianas

Localizado entre o extremo norte do Brasil e os países vizinhos (Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa). Nesses planaltos encontram-se as nascentes do rio Negro que, nas proximidades da cidade de Manaus, encontra-se com o Solimões para formar o Amazonas.

Maciço Brasileiro 

Compõe grande parte do Centro-Sul do Brasil. Sua importância econômica reside na presença de grande variedade e quantidade de recursos minerais, sobretudo metálicos, como o ferro e o manganês. Além disso, sua densa rede hidrográfica, predominantemente planáltica, apresenta grande potencial hidráulico, que em grande parte já é explorado.

África

A África é o continente que tem a maior porcentagem de suas terras formadas por maciços antigos cristalinos, fato evidenciado por seu litoral retilíneo e pelo relevo desgastado. Daí sua grande riqueza em minerais metálicos e em pedras preciosas, especialmente ao sul, onde afloram os terrenos cristalinos. Dos metais mais consumidos pela atividade industrial, pelo menos trinta ocorrem em larga escala na África.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Substituições de Importações

Substituição de importações, em economia é um processo que leva ao aumento da produção interna de um país e a diminuição das suas importações. Ao longo da história econômica mundial, os processos de substituição de importações foram desencadeados por fatores políticos ou econômicos, e foram resultado de ações planejadas ou imposição das circunstâncias.

O processo de substituição de importações, quando fruto de politica economica é geralmente obtido por controle de taxas de importação e manipulação da taxa de câmbio.

Entre as décadas de 60 e 70, a (CEPAL) defendia que o desenvolvimento das economias do terceiro mundo passava pela adoção da política de substituição de importações. Esta política permitiria a acumulação de capitais internos que poderiam gerar um processo de desenvolvimento auto-sustentável e duradouro.

No Brasil, após a crise de 29 a política de substituição de importações foi implementada com o objetivo de desenvolver o setor manufatureiro e resolver os problemas de dependência de capitais externos.

Muitos analistas acreditam que a recente fase de prosperidade das economias asiáticas é resultado da adoção de políticas que estimularam a substituição de importações e que permitiram o desenvolvimento de uma indústria voltada para a exportação...

A substituição das importações se refere a um modelo de planejamento a favor da industrialização tardia de caráter meramente capitalista. Foi implantado em muitos países da América latina. Cabe ressaltar que, em cada país, o modelo apresenta particularidades internas, referentes aos (não muito) diferentes contextos político-sociais. Suas principais idéias são "Produzir internamente tudo aquilo que antes era importado ou aquilo que iríamos importar".

Tais países viram na industrialização por substituição de importações a grande chance para evoluírem tecnológica e socialmente, pois seus políticos apostavam que o Estado poderia investir em obras de infraestrutura saneamento básico , melhorias paliativas na educação, saúde, segurança, transporte público, ou seja, preparar espaços geográficos - cidades e regiões metropolitanas - para as futuras empresas que se instalariam na Grandes cidades brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte etc. 

Aproveitando para explorar uma grande quantidade de mão-de-obra barata e desqualificada, as transnacionais se instalaram e se beneficiaram de políticas de isenção de tributos, sem a pressão de sindicatos , leis ambientais ou conflitos étnicos. Tais países, grande territorialmente e ricos em recursos minerais e energeticos, conseguiram avançar tecnologicamente mas ficariam à mercê das decisões externas do FMI e do Bird e das oscilações do mercado externo que ditavam de fora os passos para o tratamento das políticas sociais 

De fato, foi um período de crescimento econômico destes países e de grande avanço tecnológico, apesar da presença de ditadura. Mesmo assim, não foi suficiente para proporcionar uma efetiva redução dos índices de desigualdades sociais internas. Um bom exemplo disso é o Brasil que ainda enfrenta grandes diferenças entre as regiões norte - nordeste e sudeste-sul.

Países como Brasil e México alcançaram um nível de desenvolvimento econômico e tecnológico suficiente para serem classificados como paises subdesenvolvido industrializados tardiamente  e com grandes desigualdades sociais e alto custo ambiental.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Celac - e os rumos da Geopolítica na América Latina.

A Celac desenha uma nova realidade geopolítica na América Latina.


Celebrada em Havana, sob a presidência cubana, e encerrada quarta-feira (29), a 2ª Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) acrescentou novos traços no desenho de uma nova realidade geopolítica na região, que vai sendo construída em franca oposição à política hegemonista e imperialista dos Estados Unidos.


A Celac foi fundada em Caracas no final de 2011 como contraponto à Organização dos Estados Americanos (OEA). Esta última instituição excluiu Cuba do seu quadro de sócios e é completamente dominada pelos norte-americanos. Já a Celac reúne 33 países americanos, inclusive a Ilha socialista, não admite representantes dos EUA e Canadá e propugna a integração soberana e democrática dos países que compõem a comunidade.

Zona de Paz

Entre as resoluções da cúpula cumpre destacar a proclamação da região como Zona de Paz e livre de armas nucleares, proposta pelos cubanos. As resoluções são aprovadas por unanimidade, por sugestão de países alinhados com o império. As 33 nações da comunidade reclamaram o fim do criminoso bloqueio que os EUA impõem a Cuba desde 1962 e assumiram o compromisso de “não intervir direta ou indiretamente” em eventuais conflitos internos dos vizinhos. O recado ao império é claro.

O texto aprovado prevê apoio à reconstrução e ao desenvolvimento do Haiti, combate à fome e à desigualdade social, apoio à reivindicação da Argentina de soberania sobre as Ilhas Malvinas e presta uma homenagem ao ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez, comandante da revolução bolivariana que morreu em março do ano passado.

Outra decisão importante foi a criação de um foro Celac-China, que deve enfatizar os temas econômicos e o papel a cada dia mais relevante que a nova potência asiática joga na região e no mundo. A China já se transformou na maior potência comercial do planeta, tendo superado os EUA, e também é a principal parceira econômica e financeira do Brasil. Já a participação da América Latina no total do comércio chinês cresceu de 1,9% em 1996 para 4,1% em 2006.

Transição

A transição para um novo cenário geopolítico nas Américas do Sul, Latina e Caribenha foi impulsionada pela eleição de líderes progressistas em diferentes países da região, começando por Hugo Chávez na Venezuela, em 1988. Chávez resgatou as ideias integracionistas de Simon Bolívar e foi o principal incentivador da unidade regional.

A vitória de Lula em 2002 também contribuiu enormemente para que as iniciativas de integração prosperassem, dado o papel natural de liderança que o Brasil, hoje a sexta maior economia do mundo, está destinado a exercer na região. Desde então, foram criadas a União das Nações Latino-americanas (Unasul), a Aliança Bolivariana para as Américas (Alba) e ampliado o Mercosul, com a incorporação da Venezuela.

Embora não se possa falar em um projeto claro e detalhado de integração, passos significativos foram e estão a ser dados nesta direção, num movimento que contraria os interesses dos EUA e se opõe objetivamente à sua política imperialista. Teve grande significado neste sentido a derrota da Alca (Área de Livro Comércio das Américas, proposta por Washington), cujo enterro sem lágrimas foi solenemente promovido em 2005 na cidade argentina de La Plata.

Este processo histórico tem por pano de fundo o declínio da liderança econômica e política dos EUA em todo o mundo e também nas Américas, cuja contrapartida é a ascensão da China e, junto com ela, do Brics, configurando-se um deslocamento do poder industrial do Ocidente para o Oriente e do Norte para o Sul. Criou-se uma nova correlação de forças na esfera econômica, da qual emana naturalmente a necessidade de uma outra ordem mundial, que já não poderá mais ser comandada pelos EUA.

Celac e Brics

As resoluções da Celac, assim como as do Brics, apontam nesta direção. Há muita sintonia e convergência de interesses entre a comunidade americana e o grupo de grandes países do Sul (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) criado em 2009. A fundação de um banco de desenvolvimento do Brics pode facilitar os investimentos em infraestrutura e ajudar a viabilizar a integração física da nossa região.

Os acontecimentos em curso respondem a processos históricos que em larga medida são objetivos, determinados por leis que, embora decorrentes das ações dos homens e das mulheres, de certa forma escapam ao controle humano, como é o caso do desenvolvimento desigual das nações e do parasitismo.

Embora o declínio da sua liderança econômica seja hoje evidente, os EUA ainda dispõem de um poder imperialista extraordinário, inclusive no plano econômico. Mantêm, sobretudo, uma indiscutível supremacia na esfera militar e estão claramente resistindo à mudança em curso, que busca seu caminho através do conflito entre o velho, que não quer morrer, e o novo, que ainda luta para se estabelecer.

A tentação bélica

É certo que a transição começa no plano econômico, e este tem papel determinante na história, mas só se resolve nas esferas política e militar. Por isto, o movimento em curso está longe de poder ser considerado definido ou consolidado. A reação do império à integração rebelde da região, num projeto que busca fugir à sua influência, é visível.

No plano econômico, os EUA apostam na Aliança do Pacífico em contraposição ao Mercosul, nas esferas política e militar nota-se o apoio ostensivo ou velado às iniciativas golpistas, fracassadas na Venezuela, na Bolívia e no Equador até o momento, mas melhor sucedidas em Honduras e no Paraguai; o financiamento da mídia golpista e das forças conservadoras; a reativação da Quarta Frota; a instalação de novas bases militares na Colômbia e o vasto programa de espionagem internacional denunciado por Snowden. Não são gestos de quem preza e promove a paz.

As burguesias locais podem se beneficiar do processo de integração, como revelam os investimentos da Odebrecht e outras multinacionais brasileiras. Mas a fração dominante desta classe decadente, que monopoliza a mídia, está fortemente amarrada ao anticomunismo e ao Consenso de Washington, funcionando antes como uma reserva ou uma quinta coluna do imperialismo contra os governos progressistas.

Não é pouco provável que o império venha a cair na tentação de recorrer à supremacia militar para manter a hegemonia ameaçada. Os países da Celac carecem de poder militar e não possuem armas nucleares. A força da organização, que se consolida contra os prognósticos da direita e a oposição do império, provém basicamente da unidade na diversidade e do anseio comum dos povos pelo desenvolvimento soberano, democrático e pacífico. E não restam dúvidas de que o movimento em curso, embora não seja imune a retrocessos, vai ao encontro dos ventos que sopram atualmente na história.