A proposta original de alteração do Código Florestal (lei 4.771/65) do deputado federal Moacir Micheletto (PMDB-PR) tem implicações significativas para o futuro da paisagem amazônica. A análise dos impactos econômicos e socioambientais potenciais dessa proposta, realizada por pesquisadores do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), requereu a observação de três situações fundamentais: o atual padrão de uso do solo (agricultura, pecuária e exploração madeireira), as condições naturais dos ecossistemas amazônicos (solos, regime pluviométrico, condições de drenagem, elevada biodiversidade etc.) e o significado da cobertura florestal no desenvolvimento regional. Em geral, a proposta presume que o desenvolvimento rural da Amazônia deve ter como base a agropecuária. Tem três premissas básicas: que o aumento da produção deve ocorrer em função dessa expansão da fronteira agrícola, que toda a Amazônia tem tal vocação e que a floresta não tem importância econômica.
Expansão da fronteira agrícola
A proposta do deputado Micheletto supõe que é necessário expandir a fronteira agrícola na região. O desenvolvimento agropecuário implicaria incorporar (em termos práticos, desmatar) novas áreas ao processo produtivo.
Dados oficiais, entretanto, revelam um outro cenário. Uma estimativa conservadora do Censo Agropecuário do IBGE (1996) revela que um quinto das áreas alteradas, isto é, áreas de floresta e cerrado convertidas para uso agrícola na Amazônia, está abandonado. Essas áreas degradadas concentram-se no chamado "arco do desmatamento". A área total abandonada na Amazônia - 165 mil km2 - é maior que os estados de Santa Catarina e Espírito Santo juntos. Mesmo as áreas utilizadas (aproximadamente 600 mil km2) apresentam uma baixa produtividade agrícola.
O exemplo da pecuária é ilustrativo, por ser o uso dominante nas áreas que sofrem a influência do homem (77% da área convertida considerada produtiva). Em geral, o desempenho econômico da pecuária é sofrível. A taxa interna de retorno, uma medida do desempenho do investimento, é de apenas 4% (uma taxa mínima aceitável seria de um investimento de baixo risco, como a poupança, que oferece 6% ao ano). Essa baixa lucratividade da pecuária está associada ao caráter extensivo da atividade: 40% dos pastos têm apenas 0,5 cabeça de gado por hectare. Em contraste, a média no Sul-Sudeste é de 1,3 cabeça por hectare. Apenas a pecuária mais eficiente e capitalizada, praticada por uma fração dos fazendeiros, tem taxa de retorno de 8% a 14%. Nesses casos a pecuária atinge uma lotação superior a uma cabeça por hectare.
Em contraste, a exploração de madeira usando técnicas para reduzir danos à floresta e estimular a regeneração (manejo sustentado) obtém um taxa interna de retorno estimada em 33%, segundo estudos do Imazon. Se toda a área atualmente utilizada para a pecuária extensiva (baixa produtividade) utilizasse técnicas mais intensivas de produção, as pastagens existentes poderiam suportar quase o dobro do rebanho atual. Como o rebanho atual é estimado em 32 milhões de cabeças em 45,8 milhões de hectares, a intensificação viabilizaria um rebanho de 60 milhões de cabeças na mesma área.
O setor pecuarista pode continuar crescendo só com a intensificação da criação de gado. A intensificação não é apenas tecnicamente correta, mas também economicamente viável em muitas regiões da Amazônia. A reforma das pastagens tem sido feita com sucesso em várias partes da Amazônia. Nessas pastagens reformadas o ganho de peso por hectare é cerca de três vezes maior, quando comparado aos sistemas extensivos. Além disso, a perda de fertilidade do solo nessas pastagens reformadas é menor, sugerindo uma melhoria na reciclagem de nutrientes. A solução mais racional, portanto, não é expandir a fronteira agrícola, e sim recuperar as áreas degradadas ou abandonadas e melhorar a produtividade da agropecuária extensiva.
A proposta do deputado Micheletto supõe que toda a Amazônia tem vocação agrícola. A realidade é bem diferente. As condições naturais diferem significativamente ao longo da paisagem amazônica. Somente uma fração pequena da Amazônia possui condições favoráveis para a agricultura, incluindo solos relativamente férteis, clima e relevo adequado. Seria desastroso considerar que essas condições valem para toda a região.
Há por exemplo uma grande diferença no regime de chuvas entre o sul da Amazônia, uma zona relativamente mais seca dominada por florestas abertas e áreas alteradas, e a sua porção central, onde predominam chuvas copiosas (acima de 2.200 mm por ano). No geral, nessas áreas mais centrais há enormes restrições naturais à agricultura: umidade excessiva, solos pobres e encharcados, relevo acidentado. Cerca de 90% dos solos da Amazônia são ácidos, quimicamente pobres e a umidade excessiva favorece extraordinariamente o desenvolvimento de pragas e doenças.
O excesso de chuvas e os solos encharcados, especialmente no Estado do Amazonas, impõem uma barreira natural ao desenvolvimento da agricultura. A combinação desses fatores torna a agricultura, do ponto de vista econômico, extremamente desvantajosa e em muitos casos inviável. Uma conclusão similar, indicando a falta de aptidão agrícola da maioria das áreas da Amazônia, está presente no relatório final do Projeto Radam Brasil, de 1975, o maior e mais completo levantamento de recursos naturais da região.
Em uma compilação inédita feita a partir dos dados do Radam, os pesquisadores do Imazon dividem a Amazônia em três grandes regiões:
Amazônia relativamente seca - Com precipitação inferior a 1.800 mm/ ano, corresponde a aproximadamente 17% do território. Essa área concentra-se ao longo do arco de desmatamento (ao sul da bacia amazônica) e em áreas isoladas de cerrados e campos naturais situadas nos Estados do Amapá e de Roraima. Nessa região, as condições climáticas são relativamente mais favoráveis para a agricultura. Embora os solos sejam predominantemente pobres, há manchas esparsas de terras férteis (como a terra roxa) em Rondônia, Pará e Mato Grosso. As condições de drenagem são adequadas e o relevo é relativamente favorável à mecanização.
Amazônia úmida - Com precipitação anual entre 1.800 mm e 2.200 mm, essa região é formada basicamente por florestas densas de terra firme, os solos são em geral pobres (embora haja manchas férteis), o relevo é ondulado e as condições de drenagem são razoáveis. O excesso de chuvas e a existência de um período seco reduzido criam severas dificuldades agronômicas e econômicas à agropecuária. Representa cerca de 38% da região e se concentra numa faixa de transição entre a Amazônia central e o arco de desmatamento.
Amazônia extremamente úmida - Caracterizada por chuvas em excesso (superiores a 2.200 mm, atingindo 4.000 mm a 4.500 mm), baixa fertilidade, solos encharcados, elevado risco de erosão e relevo em muitas áreas acidentado. Abrange 45% do território e se localiza principalmente na porção central da Amazônia (a maior parte do Estado do Amazonas, norte do Pará e Amapá). Condições naturais adversas tornam a agricultura economicamente inviável. Estudos em andamento por pesquisadores do Imazon e economistas do Banco Mundial, usando dados do Censo Agropecuário, mostram que pluviosidades mais altas são sistematicamente associadas com vários indicadores de menor produtividade e valor da terra. Por exemplo, a alta pluviosidade é fortemente associada à maior proporção de áreas desmatadas abandonadas e à menor lotação de gado nas pastagens. Esses indicadores são mais baixos em áreas úmidas, mesmo isolando o efeito de outros fatores que podem contribuir para o valor da produção agrícola, como o acesso a estradas, solos e proximidade de cidades.
O excesso de chuvas prejudica a agricultura de várias formas. A queimada para limpar o solo depois do desmatamento é menos eficiente, porque o material lenhoso não seca o bastante. Assim, o plantio é prejudicado. A regeneração da mata cortada (brotos de raízes e tocos) é mais vigorosa em áreas mais úmidas, o que leva ao aumento dos custos de manutenção. A umidade excessiva ocasiona um aumento significativo de pragas e doenças. A alta umidade do solo dificulta a mecanização, decisiva para aumentar a produtividade agrícola. A colheita e o armazenamento, em especial de grãos, são severamente afetados pelo excesso de chuvas.
A proposta do deputado Micheletto parte ainda do princípio de que a floresta é um obstáculo ao desenvolvimento. A realidade, porém, revela uma situação significativamente diferente. A principal atividade econômica de uso da terra na Amazônia é a madeireira, e não a agropecuária. A atividade florestal, incluindo exploração e processamento de madeira e de produtos não-madeireiros como castanha, palmito e borracha, contribui com 15% do PIB regional, contra menos de 10% da agropecuária. O desempenho econômico da exploração e do processamento da madeira é bem maior que o da pecuária, em todas as condições agronômicas da Amazônia. Em geral, a operação de uma indústria madeireira é substancialmente lucrativa, com margem de lucro de 20% a 30%.
A exploração madeireira com técnicas de manejo sustentado pode ser uma solução intermediária, pois concilia geração de emprego, renda e impostos com a manutenção da cobertura florestal. As 2.500 madeireiras em operação na Amazônia extraem cerca de 28 milhões de metros cúbicos de madeira em tora, o que coloca a região ao lado da Indonésia e da Malásia como um dos maiores produtores de madeira tropical do mundo. A renda bruta do setor é de aproximadamente R$ 3 bilhões, contra R$ 660 milhões da pecuária -isto é, cinco vezes maior.
Com relação a empregos, a contribuição do setor florestal é extremamente significativa. Os 220 mil empregos permanentes gerados pelo setor madeireiro representam quase o dobro do obtido pela pecuária (118 mil). Além disso, para gerar um emprego permanente na pecuária é necessário utilizar 428 hectares de pasto, enquanto na atividade madeireira bastam 7 hectares de floresta. O recolhimento de impostos é outro exemplo ilustrativo. A contribuição anual potencial do setor madeireiro no ICMS é de aproximadamente R$ 300 milhões, contra apenas R$ 33 milhões da pecuária. Ou seja, a relação de contribuição tributária potencial do setor madeireiro em relação à pecuária é de 9 para 1.
Em termos relativos, a contribuição do setor madeireiro representa 10% a 15% do total de impostos arrecadados nos Estados do Pará, Mato Grosso e Rondônia. É necessário considerar também o valor da floresta que seria derrubada para dar lugar à agropecuária. A Amazônia abriga os maiores estoques de madeira tropical do mundo. A floresta também está sendo valorizada pelos produtos não-madeireiros, como fibras, óleos, corantes, resinas, plantas medicinais e alimentos. Esses produtos têm grande importância na economia regional e contribuem para o bem-estar de 1,5 milhão de extrativistas. As florestas intactas estão sendo valorizadas, ainda, pelos serviços que prestam ao Brasil e ao mundo na regulação climática, proteção contra os incêndios e conservação das bacias hidrográficas. A Amazônia abriga mais de 50% da biodiversidade do mundo, um recurso estratégico no século 21.
Um modelo sustentável para a Amazônia
A concepção de desenvolvimento baseado na agropecuária, como objetiva a proposta de alteração do Código Florestal do deputado federal Moacir Micheletto, é inadequada às condições naturais e econômicas da maior parte da Amazônia. É importante reconhecer o papel da agricultura no desenvolvimento da Amazônia. Se realizada nas áreas com aptidão agrícola (por exemplo, solos, relevo, drenagem e chuva adequados), essa atividade pode gerar expressivos benefícios econômicos e sociais. Entretanto, é importante não estimular a agropecuária em áreas onde a vocação é florestal. É fundamental lembrar que há uma economia florestal significativa na região. Portanto, não se quer "congelar" imensas áreas de florestas, impedindo o desenvolvimento regional. O que se propõe é garantir o uso sustentável dessas áreas para produção de bens e serviços da floresta essenciais para o Brasil.
Além disso, é importante assegurar a preservação de áreas de interesse biológico e estratégicas para o país. Finalmente, é crucial realizar um zoneamento econômico e ecológico na Amazônia, para definir em uma escala mais detalhada as zonas de uso florestal, as áreas de interesse biológico que devem ser preservadas e as regiões para fins agropecuários. Esse zoneamento deve ser feito de forma democrática, com elevada isenção e competência científica.
Publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 28 de maio de 2000.
Nenhum comentário:
Postar um comentário